Entrevista Tem bicho no frontispício
A escritora Sofia Mariutti e o ilustrador Vitor Rocha atribuem profissões a animais para reimaginar as etapas da produção editorial pelos olhos das crianças
por Jaqueline Silva
Amantes de livros de quaisquer idades sabem que a regra um da leitura é não julgar um livro pela capa e que, afinal, o que realmente interessa é o conteúdo. Clichezão. Leitores sabem também que uma boa aventura pode começar com a página que dá início a história, ou, como dizem, “depois da página 80”, depois de toda a introdução aos personagens e ao contexto da trama; há até aqueles que só mostram a que vieram na última página, quando o leitor fecha o livro e diz sozinho “uau”.
Em Tem um gato no frontispício (Baião, 2024), de Sofia Mariutti e Vitor Rocha, a capa parece pedir que o leitor julgue sim o livro por ela. Frontispício, orelha, colofão e uma série de palavras pouco comuns ao vocabulário cotidiano brincam com a curiosidade de leitores de todas as idades, que são surpreendidos pela presença de animais que personificam cargos de produção editorial a partir das características de cada bicho. A história se torna um jogo de procura e acha, enquanto fala do próprio livro e de tudo o que foi necessário para transformar tudo isso no objeto livro, esse que o leitor tem em mãos. É a fineza da metalinguagem na prática.
Em entrevista para a Quatro Cinco Um, os autores contam sobre as relações que teceram para transformar animais em profissionais do universo editorial, a metalinguagem dos livros que falam sobre livros e o interesse por imaginar novas formas de contar histórias para as infâncias.
Os autores Sofia Mariutti e Vitor Rocha (Luiza Sigulem; Greta Coutinho/Divulgação) Afinal, o que é um frontispício? E por que tem um gato nele? Sofia Mariutti e Vitor Rocha: O frontispício é aquela página que identifica o livro, ali no comecinho, como uma espécie de capa interna, que pode trazer algumas informações além das que estão na capa — título, autores, editora —, como o nome de quem traduziu, organizou, escreveu o posfácio e as notas, o número da edição, etc. É também chamado de “folha de rosto”. O gato no frontispício é a inspiração, foi onde tudo começou. Foi ele que deu origem ao livro todo, então ele tinha que estar bem ali.
De onde surgiu a ideia do livro? SM: Tinha um gato no frontispício do meu primeiro livro ilustrado, Vamos desenhar palavras escritas? (Companhia das Letrinhas, 2023), feito em parceria com a Yara Kono. O gato está lá por acaso, foi uma decisão da ilustradora. Como de costume, é uma vinheta de uma ilustração que aparece mais pra frente, no miolo do livro. Quando vi aquele gato, escrevi em um e-mail “adorei o gato no frontispício.” Aí fiquei com essa frase na cabeça, “tem um gato no frontispício”, e comecei a pensar num livro metalinguístico, que falasse das partes do livro, com bichos escondidos em cada uma delas.
Qual o impacto de escrever um livro sobre livros, focado na parte da produção editorial, para crianças? SM e VR: Existe uma tradição estrangeira de livros que falam sobre livros, com a qual o nosso conversa. Como o Um muro no meio do livro (Pequena Zahar, 2019), do Jon Agee, que talvez seja sua maior inspiração. Não nos lembramos de termos visto muitos livros brasileiros falando mais diretamente sobre livros, e muito menos sobre as profissões, processos e partes desse objeto. Acreditamos que falar do livro e de todo o trabalho que envolve fazê-lo pode ajudar a valorizar os profissionais do mundo editorial, informar adultos e crianças sobre a complexidade desse trabalho, e também olhar de um jeito novo para esse objeto familiar, brincando e interagindo com ele.
Ilustrações de Vitor Rocha (Todavia/Divulgação) Por que utilizar animais para descrever cada uma das etapas e elementos da produção editorial? Quais associações vocês quiseram fazer? SM e VR: Depois do gato, foi natural manter essa dinâmica no resto do projeto. A gente queria identificar de um jeito divertido os elementos que constituem o livro. Os bichos são protagonistas da infância, e facilitam esse jogo. Além disso, vemos uma beleza em juntar essas palavras que talvez nunca tenham se encontrado antes, elefante e quarta capa, ratinho e colofão, lombada e lagarta.
VR: Essa mecânica foi a base para ilustrar o processo editorial: os bichos também deveriam representar as pessoas que fazem parte da confecção de um livro. Mas que bicho vai ser quem? Algumas associações são mais evidentes como a dos polvos e das lulas na gráfica, por conta da tinta e uma infinidade de processos para cada tentáculo. Já outras são mais abertas, podem fazer parte do processo de leitura e cada um vai ter sua explicação. Acho que o cachorro pug é um bicho sofrido, tadinho, cheio de olheira, respira e dorme mal, sobrancelhas sempre franzidas. Para mim, faz sentido ser quem escreve o livro.
SM: A coruja é um bicho sabido na tradição de livros para a infância, como o corujão do Ursinho Pooh, e foi natural ela se tornar a bibliotecária. As zebras se camuflam com suas listras — que, aliás, mimetizam as linhas de texto! —, como as editoras que ficam atrás das cortinas, nunca nos holofotes.
Como funciona o processo de escrever e projetar um livro-jogo, especialmente um de procura e acha? SM: A minha pergunta final, “E no miolo, o que é que tem?” é muito genuína, porque quando levei o livro para a Baião, eu não tinha ideia de como ele seria ilustrado. Cada página falaria de um bicho que está em outra parte do livro, na orelha, na dedicatória, no glossário, mas o que estaria nas próprias páginas, junto do texto? Então veio a ideia com o Vitor e as mulheres da editora — as editoras Mell Brites e Laís Varizi, a designer Nathalia Navarro e a produtora gráfica Aline Valli: e se a gente criasse uma narrativa visual contando como um livro é feito, e cada bicho fosse um profissional na cadeia do livro?
VR: Foram muitas as reuniões em que achamos estar enlouquecendo. Além do jogo em si, a gente queria muito que a narrativa fizesse sentido, que o bicho estivesse no lugar certo do processo editorial, exercendo sua função. Isso não foi fácil, e a Mell, a Laís, a Nathalia e a Aline foram fundamentais na elaboração desse projeto. Esse aspecto coletivo da criação do livro valorizou ainda mais a narrativa.
Como foi pensar e trabalhar nas ilustrações, que são tão inventivas? VR: Queria que as ilustrações também valorizassem os elementos materiais da criação: papel, lápis, tinta. Por isso, as texturas, as manchas, as linhas desencontradas remetendo a esse processo vivo, ativo. A horizontalidade do livro também me trouxe uma influência muito forte dos pergaminhos japoneses, então tem uma pegada asiática na representação dos animais. Por outro lado, me preocupei em trazer bichos que fossem característicos da nossa fauna. Ah, e registrei algumas das reuniões do próprio processo do livro (tenho prints!) para colocar na narrativa visual. Foi realmente muito divertido.
Que livro vocês gostariam de ter lido na infância? VR: Amo o O dicionário do menino Andersen (SESI-SP, 2019), do Gonçalo M. Tavares e da Madalena Matoso. Tem um jeito não convencional de olhar para os objetos que me encantam. É engraçado e não tem uma “narrativa” certinha, definida com início, meio e fim. É como um livro de regras para enxergar e definir as coisas de outro jeito.
SM: Não conheço esse, quero ler! Queria ter lido Amanhã (Pequena Zahar, 2022), da Lúcia Hiratsuka, e Amoras (Companhia das Letrinhas, 2018), do Emicida. Queria ter tido desde cedo essa educação antirracista que as crianças estão recebendo hoje. O bom é que a meninice se prolonga, e seguimos sendo leitores de livros para as infâncias, que nos tocam e transformam.
Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças? VR: Preparar o ambiente e propor um horário para leitura me parecem funcionar. É importante também se interessar pelas escolhas das crianças, trocar conversas sobre os livros e, claro, manter ativo também em você o hábito da leitura.
SM: Pensando no Brasil, acho que ainda temos que trabalhar muito no acesso ao livro, que, na maioria das vezes, é precário. Muitas crianças crescem sem livros em casa. Nesse contexto e em qualquer contexto, as bibliotecas e escolas são ambientes fundamentais para formar leitores. Visitar bibliotecas e alugar livros é um hábito que deve ser muito incentivado. Uma amiga, Rita Mattar, da editora Fósforo, estava sonhando outro dia com uma cesta básica de livros. Imagina só: uma espécie de bolsa família para livros? Seria incrível, afinal “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. (No alto da newsletter, ilustração de Vitor Rocha) |
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