PROCESSO ARTÍSTICO
São Paulo, 1984. Vive e trabalha em Ipaussu, Brasil.
A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Como que conduzida pela sabedoria de Guimarães Rosa, Renata Egreja vai acumulando em suas telas de grande formato os humores da vida, registrando dia a dia a fúria, depois a gentileza, o movimento amplo, depois a vontade de apagar tudo. Quando sossega, pinta com gratidão pela vida; quando desinquieta, pinta com furor de quem sabe da inevitável finitude da vida. Vai assim embaralhando vida, coragem perante a vida e pintura.
O gesto que um dia foi contido, a ponto de traçar o contorno de uma flor, no dia seguinte é descontrolado, derramando tinta líquida sobre a tela. Cada pintura é composta de várias camadas desses humores. Uma se sobrepõe à outra, ou melhor, pousa sobre a outra, sem escondê-la. Convivem como convivemos com os dias que vão passando, alguns de tranquilidade, outros de desespero. E segue-se. Esse registro de estados psíquicos intercepta um diário de viagens e culturas que a artista vivenciou nos últimos anos, mesclando cores carnavalescas bem brasileiras à iconografia indiana.
Quantos verbos ficam marcados nessas telas? Esparramar, derramar, erguer, raspar, contornar, espirrar, bater, esfumaçar, misturar, jogar, aplicar, colar, traçar, preencher. Para finalizar esses cataclismos de energia vital, a artista fecha a tela com uma chave, que é sempre um padrão linear traçado na camada mais superior: linhas que fazem a pintura persiana (e quem ousa abrir essa persiana e olhar de frente para a massa disforme da vida?), uma flor que atravessa a tela de cima abaixo, suavemente contendo os dias passados, que ainda pulsam na composição, bandeirinhas que separam a festa caótica do mundo real, desenhadas em movimentos que mimetizam a escrita cursiva. Ainda em um paralelo com a escrita, se essas telas fossem textos, seriam uma prosa coloquial, na qual a delícia está na ortografia errada e na gramática trôpega, que vai formando um espaço para a expressividade espontânea. E, iniciadas nos anos em que a artista brasileira estudou na École de Beaux-Arts de Paris, essas pinturas vernaculares ficam entre Guimarães Rosa e Raymond Queneau, sem esconder os sotaques, os ruídos, a falta de acabamento, em frases garranchadas com autenticidade.
“Não tem nada mais belo que morrer numa festa. Para mim a pintura representa esse drama, de morrer numa festa”, diz a artista. Pintar para continuar, para fazer medrar do corpo a energia vital. Desmorrer a cada dia. Quando secar e for fim da festa, viveu-se bem; então é passar a chave e partir para a próxima. Tela? Vida? Tudo embrulhado. Se a pintura acabou, recomeçar uma pintura nova.
Paula Braga | Crítica de Arte
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