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Há quem pense que não se pode colocar vinho novo em garrafas velhas. O autor senegalês Mohamed Mbougar Sarr faz exatamente isso em seu A Mais Recôndita Memória dos Homens - pega um croqui já pronto e constrói seu romance a partir de materiais próprios. O resultado – uma trama de busca de um livro perdido, e suas consequências – é ao mesmo tempo familiar e novo, conhecido e inédito. O livro de Sarr nos apresenta principalmente aos diários de Diégane Faye, um estudante de doutorado senegalês que se depara com os escritos de T. C. Elimane, autor de O Labirinto do Inumano, que foi saudado com todas as loas da crítica até que seu autor caiu em desgraça e seu livro em gradual esquecimento. Assim, em boa parte o livro traça as aventuras de um doutorando na Paris de 2018, e sua obsessão por um autor quase perdido. Tipos contemporâneos do campo literário – desde o ficcionista de talento e sucesso até o crítico ferino e meticuloso, passando pela influenciadora digital literária e pela autora mais velha, premiada e reconhecida – aparecem ao lado das reflexões de Faye acerca da vida e da literatura. O estilo e a estratégia de Sarr lembram um pouco o Roberto Bolaño de Os Detetives Selvagens: há uma oscilação da espessura do que se conta, uma passagem do banal ao abissal, que Bolaño articulou de um jeito bem-sucedido muitas vezes, e que aqui é visivelmente emulada. Parte da fortuna desse livro magistral é que essa imitação, nunca disfarçada, é usada de maneira inventiva e surpreendente. Com isso, Sarr fez um livro que é bolañesco, mas também não é – sua espinha dorsal tem uma matéria-prima algo distinta, e esse deslocamento metamorfoseia tudo. Uma fonte importante é a história, real, do ficcionista malinês Yambo Ouologuem, a quem o livro é dedicado, e cuja trajetória tem muita semelhança com a de Elimane. Ouologuem ganhou notoriedade com seu único romance, Destinado à Violência. A saga que descreve e reinterpreta a história do Mali foi laureada com o Prêmio Renaudot em 1968. Pouco tempo depois, o autor caiu em desgraça, acusado de plágio e, inábil ou incapaz de melhor defesa, recuou e retornou ao Mali, onde viveu até o fim dos dias em relativa reclusão, convertido ao islamismo. Fosse apenas uma biografia romanceada desse autor, já dava um romanção. Mas o livro de Sarr é mais. A certa altura, Faye anota em seu diário: “Tudo é permitido nas variações e nas combinações que a criação literária oferece. Levantamos um alçapão de tristeza, e a literatura faz uma grande risada emergir do buraco. Você entra em um livro como num lago de dor escura e gelada. Mas no fundo do lago, de repente, você é surpreendido pela melodia alegre de uma festa.” Esse livro é uma dessas festas às quais a literatura nos convida de vez em quando. |
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O tratamento dado à obra do escritor inglês Martin Amis no Brasil tem sido irregular. Talvez a sua morte no último dia 19 de maio estimule uma reavaliação de seu legado. O estilo de Amis – entre o sinuoso e o staccato; cheio de piadas de duplo sentido baseadas em variações sutis da língua inglesa – é de difícil tradução. Mas se catataus muito mais desafiadores como o Ulysses de James Joyce ou Graça Infinita de David Foster Wallace chegaram ao Brasil em traduções triunfais, é certo que a acidez cômica e juvenil de The Rachel Papers, ou o malabarismo arrojado de Time’s Arrow (um romance sobre o Holocausto contado em tempo reverso) pode receber bom tratamento. É incompreensível, por exemplo, que Experience, o livro de memórias de Amis, lançado em 2001, nunca tenha recebido uma edição brasileira. A constelação de figuras na vida de Amis é notória: ele é filho de Kingsley Amis, é uma espécie de sobrinho-postiço de Philip Larkin (pela amizade próxima do taciturno poeta com o pai), é enteado de Elizabeth Jane Howard e era amigo do peito de Christopher Hitchens, Salman Rushdie e Ian McEwan. Tudo isso só é menos impressionante do que ele próprio, um protagonista cuja verve linguística e presença de palco (para usar um termo aplicado mais a estrelas da música, com quem ele às vezes se parecia) acabavam por ofuscar seus contemporâneos. As cartas irônicas e espirituosas que Amis escrevia para sua família enquanto ainda estudava em Oxford já valem pelo livro. Enquanto a reconsideração da obra não chega, uma boa opção é a versão brasileira do romance A Informação, publicado em 1995, em tradução do já falecido Sergio Flaksman, colaborador de longa data da piauí. O livro conta a história de dois amigos escritores, Richard Tull e Gwyn Barry. Tull – o protagonista que é quase alter-ego do autor – está perplexo com o nível de atenção literária que Barry está recebendo. Acostumado a ganhar do amigo em tudo (no tênis, no xadrez, em conquistas amorosas), a inveja o corrói, mais ainda porque ele não considera o amigo particularmente talentoso. Na superfície, A Informação é um romance cômico sobre a inveja literária e o filistinismo do métier, presente tanto nos vitoriosos como nos derrotados pelo mercado. Em retrospecto, porém, o livro dramatiza temas que se tornariam cada vez mais presentes: o declínio da figura do grande escritor masculino; a estratégia de arrivistas que se utilizam do pleito de minorias para alavancar o próprio sucesso (Barry é especialista em agradar jurados de prêmios literários). Há, também, uma nota agridoce no romance – pois a partir dele, Amis entraria numa guerra fria com a imprensa inglesa, que, salvo o armistício na boa recepção crítica de seu livro de memórias, passaria a ridicularizá-lo com mais frequência, eventualmente provocando sua migração para os Estados Unidos. “Seu exílio foi nossa perda”, a manchete do obituário no The Telegraph grafou. |
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Confira o portfólio do fotógrafo boliviano River Claure, publicado na piauí em maio de 2023. Claure é neto de camponeses aimarás que migraram para centros de mineração e depois se estabeleceram em Cochabamba, onde ele nasceu há 25 anos. Em suas fotos, Claure reinventa aspectos tradicionais de seu povo – que habita os Andes argentinos, chilenos, peruanos e, sobretudo, bolivianos –, combinando-os com elementos atuais, como tecidos sintéticos ou objetos de plástico. A presença desses novos elementos está longe de implicar uma crise de identidade para os aimarás: é muito mais um modo de eles afirmarem seu lugar e sua cultura mestiça nos tempos atuais. Embora ameaçado há séculos, esse povo soube atravessar espaços entre o campo e a cidade, e assim sobreviver, se renovar e participar do mundo contemporâneo globalizado. Fotografia de River Claure_2020 |
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Na Companhia de Rufus, conto publicado na edição de maio da piauí, conta a história de Joaquim, um homem negro que tenta se conformar com um emprego qualquer, ora envergonhado e ora orgulhoso por causa de sua atração irracional pela literatura. No texto, Jeferson Tenório retoma o estilo seco – ao mesmo tempo paciente e cheio de uma raiva contida – pelo qual ficou famoso em O Avesso da Pele, seu romance vencedor do prêmio Jabuti de 2021. Rufus, personagem de James Baldwin em Terra Estranha, é o estrangeiro que se coloca inconvenientemente na vida do protagonista e o acompanha. Sua estadia não é sempre bem-vinda. O supervisor no emprego de telemarketing, por exemplo, pede para Joaquim tirar o livro da mesa e o deixar em casa. “Embora o mundo das letras não fizesse parte do seu universo, Joaquim intuía que a literatura não dava dinheiro”, escreve Tenório. “Ele tinha razão. No entanto, a sua impressão era a de que tudo que ele mais gostava de fazer não dava dinheiro. Descobriu ainda que as coisas difíceis e inúteis sempre o atraíam. E pensava que talvez ele estivesse condenado a continuar se fodendo como todos os outros negros que se foderam antes dele.” Comovente e avesso a redenções lineares ou fáceis, Na Companhia de Rufus mostra porque Tenório é uma das vozes mais potentes de sua geração. Ilustração de Robinho Santana_2023 |
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