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WEB TV VISUAL ARTV - Da noite e da música

Da noite e da música

Página da Música --- Helton Altman

www.paginadamusica.com.br/edanteriores/fevereiro02/heltonaltman.htm

Um dos mais atuantes produtores da música popular brasileira, Helton Altman tem a vida que muitos pediram a Deus, de bar em bar, de show em show
Por Alexandre Pavan
    Às vezes é difícil saber como tudo começou. Mas com o produtor musical Helton Altman foi mais ou menos assim: no início da década de 70, quando ele tinha 14 anos e era estudante de cavaquinho, quinzenalmente a Abril Cultural lançava a coleçãoNova História da MPB. Nas vésperas da chegada dos discos – que tinham encartes repletos de textos e fotos dos grandes nomes da música nacional – às bancas de jornal, o rapaz não dormia de tanta ansiedade. "Era uma agonia danada, não podia ser emoção barata de fã. Tinha que encarar aquilo profissionalmente ou então procurar um médico", recorda.
    Altman decidiu-se pela primeira opção e hoje é um dos mais atuantes produtores culturais do Brasil, à frente de projetos como o Boteco do Cabral, apresentado todo mês no Sesc São Paulo pelo jornalista Sérgio Cabral; o Clube e a Rua do Choro; oCircuito Paulista de Festivais e o Mercado do Disco – que a partir de março reunirá semanalmente artistas e donos de selos pequenos no Memorial da América Latina, em shows e feira de CDs. Fora outros tantos já realizados, como é o caso das três edições do Chorando Alto (1996, 1997 e 1998), que reuniu Egberto Gismonti, Claire Fischer, Jim Hall, Guinga, Paulinho da Viola, Edu Lobo e o então novato Yamandú Costa, entre centenas de outros.
    Aos 20 anos, em 1980, Altman abriu seu primeiro bar, em parceria com os irmãos, Arnaldo e Ricardo. Instalado na Rua João Moura, no bairro de Pinheiros, a idéia inicial do Clube do Choro de São Paulo era abrigar a Associação do Choro, que acabara de perder sua sede. "Quando abri o bar, acreditava que aquilo seria uma coisa temporária como profissão. Eu estudava economia na Faap, achava que ia tocar aquilo por uns cinco anos e só depois resolveria o que fazer da vida."
    O sucesso do lugar fez Altman mudar de planos. Os eventos musicais que o bar promovia tinham recorde de público e constantemente as cem mesas estavam lotadas. Na universidade, Altman mudou de curso, de economia para comunicação. "Comecei a ver que não ia sair mais dos bares, porque sou boêmio, a música passa por ali, mais ou menos a união de economia com comunicação, embora os cursos acadêmicos não tenham me ajudado em muita coisa", diz.
    Homenagem a Pixinguinha – Como o Clube do Choro era um local onde basicamente só se tocava o gênero que lhe dava nome, Altman decidiu expandir a proposta. Em 1984, mais uma vez em parceria com os irmãos – acrescido aí o amigo e compositor Eduardo Gudin na sociedade –, inaugurou o Vou Vivendo. "Além de ser o título de um dos choros mais perfeitos de Pixinguinha (na opinião de Paulinho da Viola, inclusive), escolhemos esse nome porque é uma expressão boêmia", explica. Na entrada do bar, uma estátua de Pixinguinha em tamanho natural, confeccionada por Elifas Andreato, recebia os visitantes.
    O Vou Vivendo, também instalado em Pinheiros, inaugurou uma nova proposta artística na capital paulista, onde até então os shows estavam confinados às grandes casas de espetáculos e teatros. A música ao vivo nos bares era apenas informal. "Não existia um lugar que projetasse novos compositores ou homenageasse os antigos, sem interesse comercial. Porque isso é o tipo de coisa que realmente não dá retorno. Pode dar prestígio, retorno de mídia, mas com um show num bar, o máximo que você faz é empatar o investimento", pondera Altman.
    O primeiro show solo que Guinga fez na vida foi no Vou Vivendo. As primeiras apresentações, em São Paulo, de Moacyr Luz, Sérgio Santos, Lenine e Roberto Mendes, também. O interesse em valorizar e divulgar a música brasileira era tão grande que, não raro, Altman cometia algumas barbaridades que contrariavam todos os manuais da boa administração financeira de um bar. Quando a Funarte lançou os livros e discos sobre Candeia e Ismael Silva, o Vou Vivendo convidou a Velha Guarda da Portela para uma apresentação e distribuiu mocotó e chope de graça para 400 pessoas. Mocotó que, aliás, foi preparado pela viúva de Candeia.
    "Aquele dia foi emocionante. Tive até um problema na mão que pensei que iria ter um derrame", lembra Altman. "Quando o pessoal estava subindo ao palco – todos vestindo azul e branco, ainda com o Manacéa, Beto Lonato, aqueles velhinhos lindos, autênticos –, eu tive que virar de costas porque o coração não estava agüentando. E entrar para a história porque morreu de emoção não tem a menor graça", brinca.
    Paralelamente ao botequim da Rua dos Pinheiros, os Altman tocaram, de 1991 a 1996, o Gargalhada (mais um nome inspirado na obra de Pixinguinha), no mesmo local onde antes tinha funcionado o Clube do Choro. Mas o clima noturno do bairro já não era o mesmo. O Vou Vivendo funcionou de 1984 a 1997. Fechou as portas num momento em que a região tornou-se um grande abrigo de bares. "Pinheiros e Vila Madalena ficaram poluídos com tantas casas, muitas de qualidade duvidosa. Não sei se meu público começou a sentir isso, mas o movimento caiu."
    Mudaram o Vou Vivendo de região – para a Vila Olímpia – com a proposta de ser apenas um boteco sem música ao vivo. Nessa época, as empreitadas noturnas da família Altman ganharam a adesão do irmão caçula, o bandolinista e compositor Ronen. Mas a segunda versão do Vou Vivendo durou apenas um ano. Em 2000, os irmãos voltaram para a Vila Madalena e inauguraram uma nova casa, o Filial, que tornou-se um ponto de encontro de músicos, um reduto de boa conversa e ótimas bebidas. Às vezes o bar mais parece uma enciclopédia viva da MPB. Numa mesma noite, pode-se encontrar ali, reunidos, Paulo César Pinheiro, Vicente Barreto, Yamandú Costa, Maurício Carrilho, Nailor Proveta, Théo de Barros, Zé Renato, Toninho Carrasqueira e Arismar do Espírito Santo.
Movido a uísque – Mesmo antes de abrir seu primeiro bar, Altman já produzia shows. O primeiro foi em 1979, uma apresentação de Roberto Riberti (parceiro de Eduardo Gudin e Arrigo Barnabé) e o publicitário Anísio Barreto dirigida por Elifas Andreato. A este se seguiram centenas deles sob sua coordenação – shows de Caetano Veloso, Elizete Cardoso, Paulo César Pinheiro, uma lista enorme. Inventor de projetos, o mais recente foi o Solo Brasileiro, exibido no Sesc Pinheiros. Onze shows de onze artistas – entre eles, Paulinho Nogueira (SP), Guarabira (BA), Tião Carvalho (MA), Sérgio Santos (MG) e Zé Renato (ES) – em apresentações solos, cada um interpretando sua obra e também a de outros compositores de sua terra natal.
    Como surgem as idéias desses projetos? "Acho que é o uísque", ironiza Altman, confirmando uma crônica de Hermínio Bello de Carvalho dedicada a ele: "Helton Altman, quando nasceu, colocaram uma estrela-de-davi em seu peito e uma dose de uísque na mamadeira". Porém, um de seus shows que mais repercutiram não nasceu de uma ressaca ocasionada pelo malte escocês. Surgiu de uma revolta. Em 1999, a cantora Simone, em entrevista a Jô Soares, disse que o Brasil estava carente de compositores. Então, ela abriu uma caixa-postal para que o pessoal lhe mandasse músicas para gravar.
    "Aí ela falava: ‘Nessa minha pesquisa descobri novos talentos, como Chico César’", recorda Altman, que completa: "O Chico mandava música há 10 anos e ela nunca tinha se preocupado em ouvir". Por causa da entrevista nasceu o projeto Novo é a puta que pariu, você que nunca ouviu, que reuniu em uma série de shows os compositores Guinga, Moacyr Luz, Jean e Paulo Garfunkel, César Brunetti, Sérgio Santos, Roberto Mendes, Vicente Barreto, Celso Viáfora e as cantoras Lúcia Helena e Mônica Salmaso. "Fizemos um protesto de maneira bem humorada, musical", explica o produtor.
Acervo pessoal – Nascido em Belo Horizonte e com 22 anos de carreira, Helton Altman foi armazenando registros sonoros dos eventos que coordenou nesse período. Montar uma gravadora é um de seus próximos projetos – o outro é produzir um programa de televisão. Com o selo que pretende criar, colocará no mercado gravações que por enquanto estão restritas à sua própria discoteca.
    Possui 14 CDs com o registro do Chorando Alto, que segundo ele "dá para fazer seis álbuns excelentes", 600 horas de gravações das apresentações no Vou Vivendo, "com muita coisa memorável", e 24 shows do Boteco do Cabral, com Sérgio Cabral contando a história de gente como Tom Jobim, Aracy de Almeida, Silvio Caldas, Pixinguinha e Nara Leão. "Não tem como essa gravadora não sair", afirma.
    Recentemente resgatou as gravações originais do projeto Parceiros do Tietê, produzido por ele em 1991. Idealizado pelo pesquisador Aluízio Falcão e dirigido por Túlio Feliciano, o espetáculo reuniu artistas consagrados da MPB organizados em 16 duplas – Paulo Vanzolini e Sérgio Ricardo, Rita Lee e Almir Sater, Tom Zé e Dominguinhos, por exemplo – que compuseram canções inéditas para homenagear o Rio Tietê.
    Para Altman, a receita de um show de sucesso, além da qualidade do artista, está no roteiro. "Uma boa apresentação depende da generosidade do artista, que deve atender às expectativas do público. Ele não pode se negar a cantar seus sucessos. É a mesma coisa da pizzaria que se recusa a vender pizza de mussarela", ensina. Diz que sua maior satisfação é ver a reação das pessoas depois de concluído o trabalho. "Quando vejo gente emocionada, chorando, batendo palma de pé, aquilo me mata. Vou para casa dormir como a pessoa mais feliz do mundo."
    Enfurnado na escuridão das salas técnicas, de onde coordena o controle de som e luz dos shows que dirige e produz, Altman raramente sobe ao palco e seu rosto é quase desconhecido do público. "Sou muito tímido e, embora ache que deva me mostrar – é importante que eu seja visto e reconhecido como autor das coisas –, tenho uma trava. Nasci para o bastidor". E para os bares, seria o complemento mais exato.


Alexandre Pavan, jornalista, é colunista de música da revista "Educação" e co-autor do livro "Populares & Eruditos" (Ed. Invenção)

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